Resenha crítica e analítica da obra de Machado de Assis O Alienista
Para melhor atender o objetivo de auxiliar a todos os que buscam a matéria para realização de provas em diversos vestibulares, esse texto, apesar de evitar spoilers, contem sínteses e analises da obra em si. Acompanha um resumo da obra no final da matéria
O livro O Alienista nos traz à tona um novo Período Literário que se iniciou por meados de 1880, o Realismo. Esse período tinha como características básicas mostrar-nos a vida cotidiana como ela realmente é, de uma óptica nua e crua, sem falsas interpretações ou modificações da verdade.
Alguns autores consideram esse livro como uma espécie de pontapé inicial na obra realista machadiana, que após esse conto tornou-se cada vez mais robusta e qualificada.
Realismo Literário
Como você deve saber, a base cultural e histórica do Realismo é a ciência, que dominou as atenções na Segunda metade do século XIX, chegando mesmo a adentrar no século XX. Varreu o mundo uma onda impetuosa de materialismo, como o positivismo de Conte, o evolucionismo de Darwin, o psicologismo de Wundt, o determinismo de Taine, que se alastra pelo espírito humano como uma verdadeira paixão.
Nasce daí o gosto pela análise (psicológica ou sociológica), a objetividade, a observação, a fidelidade, a impassibilidade, a impessoalidade, etc. que são as características dominantes no Realismo.
A preocupação na literatura era mostrar a realidade, formando um retrato fiel e preciso. Neste sentido, pode se dizer que o Realismo foi um estilo engajado para a realidade, assumindo uma atitude polêmica e crítica em relação à sociedade burguesa e aos valores apregoados pela época. Em suma, como chegou a afirmar Eça de Queiroz, “o Realismo é a anatomia do caráter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos – para condenar o que houver de mau na nossa sociedade.”
A grande característica Realista em O Alienista é, sem dúvida, o tom satírico e irônico que perpassa a obra, numa crítica ao mesmo tempo veemente e humorística dos valores científicos da época. Aqui Machado se volta, impiedosamente, contra a tirania cientificista do Dr. Simão Bacamarte,
Mas a sátira do conto não se volta apenas contra a ciência. Está patente também no livro a figura do barbeiro que encarna a figura dos chefes políticos. E dos ápices de ironia e sarcasmos cheio de humor a passagem em que Machado de Assis narra a tomada do governo pela força das circunstâncias, quando se invertem os papéis de modo ridículo e cômico.
Além deste ingrediente bem próprio do Realismo, pode-se observar ainda no livro a preocupação em narrar a estória com espírito de objetividade e impessoalidade, apresentando com fidelidade os fatos contidos nas crônicas: “[…] Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses, no mesmo estado em que entrou, sem Ter podido alcanças nada. Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco, além dele, em Itaguaí”.
Principais personagens:
- Dr. Simão Bacamarte: protagonista da história, é um homem que vive para a ciência.
- D. Evarista: mulher que não era nem bonita e nem simpática, mas foi escolhida pelo Dr. Bacamarte como esposa.
- Crispim Soares: boticário da cidade, muito amigo do Dr. Bacamarte.
- Padre Lopes: homem de muitas virtudes, era o vigário local.
- Porfírio, o barbeiro: dentro do conto representa a ambição de poder político em benefício próprio.
Sinopse
O alienista é uma obra do autor Machado de Assis e foi publicada originalmente no ano de 1882, durante o movimento literário denominado Realismo.
O texto O Alienista retrata a realidade social de uma cidade pequena do Rio de Janeiro do século XIX, a cidade de Itaguaí. O foco do conto é o excêntrico e alienado patologista cerebral, Simão Bacamarte, cientista renomado pela Europa que resolve estudar as faculdades do cérebro humano na calmaria do interior carioca.
O conto é dividido em capítulos, curtos em sua maioria, possui narrador onisciente em 3º pessoa que tece comentários sobre o comportamento e as ações dos personagens e faz o uso de flash backs narrativos no decorrer do livro.
Em seções, o livro está dividido em três partes principais:
A primeira é uma introdução sobre a vida de Bacamarte, e começa quando Simão Bacamarte foi morar na pacata cidade de Itaguaí depois de formar-se médico em Portugal, onde era tido como cientista renomado. Após finalizar seus estudos na Europa, resolveu voltar ao Brasil para que assim pudesse dedicar-se aos estudos sobre a patologia cerebral. Na pequena e calmíssima Itaguaí, casou-se com Dona Evarista, que apresentava ótimas condições de saúde, e assim poderia dar-lhe filhos saudáveis e robustos. Começa então a observar, analisar e a julgar o comportamento das pessoas, e para efetivar suas pesquisas cria a Casa Verde, um estabelecimento onde as pessoas taxadas como loucas eram abrigadas, com a falsa impressão de que seriam tratadas, porém eram apenas objeto de estudo para o alienista. Os abusos e devaneios que foram cometidos na hora das apreensões dos supostos dementes de Itaguaí deixou o povo agitado.
A segunda parte, explica toda a revolta da população contra a tirania do alienista.
Com o tempo suas atitudes passam a ser questionadas porque pessoas consideradas por todos como sãs também estavam sendo levadas à Casa Verde, despertando inquietação na população e levando consequentemente a revolta dos Canjicas, e suas consequências na mudança do poder na cidade.
Em decorrência disso, um grupo de pessoas organiza-se em torno de um líder, o barbeiro Porfírio para tomar a Casa Verde, destruí-la e matar o Dr. Bacamarte.
Avisado primeiramente pela esposa de que havia uma grande massa gritando em frente à sua casa e posteriormente por seu amigo Boticário, o alienista dirige-se a essas pessoas com um discurso que já não vinha mais sendo aceito por eles, porém a multidão acalma-se e Bacamarte retorna para dentro de sua residência. Contudo, forças militares chegam para conter tal rebelião, desmotivando os Canjicas, e fazendo com que se rendessem, porém, a passagem de um terço de tal força para o lado dos rebeldes faz com que retorne a sede de poder levando-os a tomar parte do governo.
A terceira, é um desfecho intrigante de todos os atos de Bacamarte e um final inesperado, de certa forma.
Bacamarte decide libertar todos que ocupavam a Casa Verde. Toda essa confusão fez com que o alienista parasse para refletir a respeito de suas teses e se elas seriam realmente corretas. Acaba percebendo que ele era um homem completamente sem defeitos; sem desonestidade ou má índole, o que considerava loucura nos outros, levando-o a concluir que seria um ser perfeito. Para confirmar sua nova tese, dirige-se a outras pessoas questionando se ele possuiria algum defeito. Estes lhe declaram que absolutamente não. O alienista não poderia perder a oportunidade de estudar um novo caso, único como esse, então se interna em seu próprio manicômio para estudar a si mesmo. Após dezessete meses, sem novos sucessos em seus estudos, morre na solidão de seu próprio cárcere privado. Foi efetuado seu enterro com muita pompa e circunstância.
Um passeio pela história
É preciso encaixar este conto no contexto histórico, para que possamos compreender a importância das críticas contidas em O Alienista.
Nos meados do século XIX aparecem as primeiras teses médicas sobre a alienação mental e aos 18 de julho de 1841 o Imperador decreta a criação, na Praia Vermelha do Rio de Janeiro, do Hospício D. Pedro II, modelado de acordo com as instituições francesas organizadas por Pinel e Esquirol. No Brasil, até meados do século XIX, os loucos viviam soltos ou escondidos nos porões da Santa Casa, ou nas celas das prisões, e os de famílias de posses viviam trancafiados nos quartos, construídos para esta finalidade. Em 1841, surge, no Rio de Janeiro, o asilo provisório; no ano de 1852, no mesmo local, é inaugurado o Hospício Pedro II e, nesta mesma ocasião, temos, em São Paulo, o Asilo Provisório. De 1860 a 1864, foram criados os seguintes hospitais: Casa de Saúde Dr. Enéias, no Rio de Janeiro, o Hospício do Alienado de São Paulo e o Hospital da Visitação de Santa Isabel em Olinda- Recife.
No monarquismo brasileiro (1844- 1898), foram erigidos vinte e três hospitais psiquiátricos. No Período Republicano (1903-1954), trinta e cinco hospitais.
Deste modo, o que acontece no Continente no final do século XVIII e início do século XIX é a medicalização da loucura e a transformação dos Internatos em Hospitais, que se dá no Brasil, no início do século XX, mais precisamente quarenta anos após a construção do primeiro Hospício, o Pedro II. O que na Europa, deve-se a uma revolução social e a uma coerência ideológica, no Brasil, é resultado da luta da classe médica pela hegemonia do poder nas instituições, criadas durante o Império, que até então, estavam nas mãos de religiosas. A este fato se pode denominar por tomada de poder da psiquiatria científica que procurou laicizar os hospitais.
Concepções de loucura e crítica social
Em O alienista, o protagonista Simão Bacamarte cria mecanismos de identificação de “doentes mentais”, na região onde vive, com base nos comportamentos dos indivíduos que passa a observar. Por se tratar de um lugar pequeno, nota-se que o médico tinha maior facilidade para analisar as atitudes dos moradores dali e assim firmar suas teorias.
É válido ressaltar que foram considerados “loucos”, logo de início no conto, os que apresentavam comportamentos sociais facilmente encontrados nos indivíduos, de uma maneira geral.
Assim, vê-se que a loucura é associada aos “defeitos” humanos e não a um desvio de comportamento mais específico e evidente, de modo que “[…] o que era até agora uma ilha perdida no oceano da razão, começo a suspeitar que é um continente”.
Ou seja, segundo a teoria do alienista, a loucura atinge inúmeras pessoas, uma vez que elas têm as suas limitações de caráter.
Sem necessariamente considerar, por si só, os desvios de caráter, mas enxergando-os como “desvios sociais”, observa-se que a concepção de loucura defendida inicialmente na narrativa, por Simão Bacamarte, relaciona-se com a problematização do assunto exposta pela afirmação de que a loucura é sempre atestada de modo relacional: alguém é louco em relação aos outros, ou a si mesmo, neste caso, se o comportamento parece doentio quando comparado ao que esse indivíduo manifestava anteriormente; portanto, o diagnóstico se dá sempre em relação a uma ordem de normalidade, racionalidade ou saúde pré-concebidas. A loucura não é, pois, identificada por si mesma.
Normal e anormal são, portanto, termos inseparáveis. E é por isso que é tão difícil definir a loucura em si mesma
O que levava Simão a encerrar pessoas na Casa Verde era uma lógica bem semelhante: os indivíduos que se desviavam da norma social e moral de comportamento, encontravam-se, segundo ele, doentes.
A sociedade estabelece padrões de comportamento que variam de acordo com os movimentos históricos e/ou com os hábitos culturais de cada lugar. Em O Alienista, o personagem Mateus, por exemplo, era um homem simples que foi enriquecendo a ponto de construir uma suntuosa casa; seu hábito, percebido por todos na vila de Itaguaí, era perder horas a contemplar o próprio imóvel e sua fruição advinha também de poder exibir o que possuía e sentir-se, assim, admirado e até invejado pelos outros. Para Simão, o “amor às pedras”, o apego aos bens materiais e a satisfação de poder ostentar o luxo, comportamentos tão comuns entre os homens de diversas sociedades, ao longo do tempo, constituíam uma evidência de loucura, pois feriam uma norma social e moral.
O que é considerado um sintoma mental, na verdade está atrelado ao contexto social e ético, do mesmo modo que o sintoma corporal se relaciona a um contexto anatômico e genético.
Assim, o personagem Mateus, como vários outros, foi internado como doente mental por destoar daquilo que o alienista considerava padrão de normalidade. O próprio narrador o considera um “pobre” homem e tal adjetivo se destaca no contexto, pois, Mateus tornara-se rico, exibia inclusive as suas posses, mas, o significante “pobre” investe-se de novo sentido: no instante em que tal personagem tornava-se prisioneiro do médico, passava a ser uma vítima, sem poderes, sem status, um “pobre” homem. Julgava que estava mais uma vez sendo admirado, quando na verdade era “estudado”, analisado por Simão, que o trancafiaria na Casa Verde. “O pobre Mateus, apenas notou que era objeto da curiosidade ou admiração do primeiro vulto de Itaguaí, redobrou de expressão, deu outro relevo às atitudes “[…] Triste! Triste! Não fez mais do que condenar-se; no dia seguinte, foi recolhido à Casa Verde”.
É relevante acrescentar também a marcante satisfação, uma verdadeira fruição presente no protagonista no momento em que recolhia os “pacientes” à Casa Verde. Tal característica traz à narrativa uma sutil referência de suspense, devido ao terror que o médico passou a despertar nos moradores da vila.
É como se, a cada movimento do conto, uma sinistra faceta do Dr. Simão fosse “descortinada”.
A partir da descrição de comportamentos e atitudes desse homem, sugere a sua eventual loucura, desde o início da narrativa. “[…] a paciência do alienista era ainda mais extraordinária do que todas as manias hospedadas na Casa Verde; nada menos que assombrosa”.
O narrador insinua que o alienista poderia ser mais assustador que os seus próprios pacientes, o que instiga a dúvida a respeito de quem realmente “deveria” ser recolhido à Casa Verde.
Nesse contexto, ao voltar o seu personagem para a cura da saúde da alma, Machado de Assis reproduz, ironicamente, na voz de Bacamarte seu ceticismo em relação ao pensamento liberal e à racionalidade burguesa.
As personagens da primeira fase machadiana não são nada parecidas com as personagens românticas arrebatadoras. Não são personagens estereotipadas e nem simples. Escapam a transparência dos símbolos do bem e do mal.
Machado desmascara o mundo “cor-de-rosa” sugerido pelo romance romântico, em que o casamento era cura para todos os males e fiador da ordem social, ao contrário, Machado vê o casamento como uma espécie de comércio ou, pelo menos, uma troca de favores.
A literatura machadiana busca as causas secretas dos atos humanos, as quais nunca serão o amor, a compreensão e a generosidade.
Serão sempre o ódio, a incompreensão ou o interesse. Tal visão é chamada pessimismo e decorre de uma profunda descrença nos homens, pois Machado julgava que o egoísmo prepondera sobre o altruísmo, o mal sobre o bem.
Ao fazer uso do recurso da ironia como uma das características mais marcantes em seus textos, Machado de Assis, consagrou-se um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, criando um estilo que o tornou tão singular, seja criticando a sociedade de sua época ou mesmo ironizando os costumes e a retórica vazia do seu tempo.
Machado não imitava outros escritores, era original, soube “desmascarar” como ninguém a falsidade de homens e mulheres de sua época por meio da sutileza. Utilizando, para isso, temas universais, como: amor, adultério, cinismo, egoísmo, casamentos por interesse, apadrinhamentos etc., tornando, com isso, a sua leitura sempre atual.
O Alienista é uma obra que se utiliza da ironia para “desnudar” a sociedade da época do Segundo Reinado.
Não querendo dizer, com isso, que ele usava as técnicas exclusivas do Realismo para, com fidelidade, retratar as situações sociais e sim a essência de uma sociedade, ou seja, o “dito e o não dito”, o declarado e o não declarado, relativizando o significado literal da mensagem relativizando o significado literal a mensagem pronunciada fazendo a ironia “acontecer”.
Percebe-se, logo no primeiro parágrafo do conto, que o protagonista Simão Bacamarte é retratado de forma irônica como sendo autoridade das autoridades científicas:
“[…] o Dr. Simão Bacamarte, sendo filho da nobreza da terra e maior dos médicos do Brasil, de Portugal, e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua”. Bacamarte incorpora de forma bastante irônica o papel de um cientista que, dentro do mundo racional, está fora do mundo real, pois a escolha da própria esposa não é feita pelo caráter e sim qualidades relacionadas a biologia. “[…] aos quarenta anos casou-se com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz de fora, e nem bonita e nem feia” – “[…] reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, são e inteligentes”.
O que Machado pretende com o conto O Alienista é fazer uma crítica ao cientificismo do século XIX, uma vez que, na sociedade da época, as atenções principais estavam voltadas para as realizações da ciência progressista, ou seja, valorizava-se muito do que vinha a partir da explicação científica. Tanto é que no conto, quando Bacamarte era questionado, respondia “[…] a ciência era a ciência”.
Percebe-se, dessa forma, que as ações do personagem eram apoiadas a partir do caráter científico, ou seja, mesmo muitas ações de Bacamarte não fazendo sentido algum, tornavam-se efetivas, apenas por usar como explicação o aparato científico.
Ao contar a história de um doutor que procura explicar, por meio de teoria, a loucura; Machado mostra uma ciência que por si só é incerta, isto é, nos mostra o quanto somos frágeis diante de certas situações, pois, se os médicos, que detém o conhecimento, não conseguem explicações lógicas para certas ocorrências da vida, como poderia, então, encontrá-las, os seres meramente “comuns”?
Dessa forma, a obra de Machado consegue ultrapassar o seu tempo e está bem presente na atualidade, uma vez, que ela permite a reflexão, mostra-nos a literatura como uma fonte de consciência que nos leva ao questionamento dos desmandos cometidos por quem detém o poder.
CONTO ou NOVELA?
Para muitos críticos, O Alienista se classifica como uma novela; sem dúvida, levados pelo número de páginas que em algumas edições, chega a mais de oitenta.
Outros, conduzidos pela análise íntima da narrativa, classificam-na entre os contos machadianos, no que estão certos.
Com efeito, apesar do número grande de páginas, não há razão para classificar o livro como novela.
As características fundamentais da novela, podem ser resumidas assim:
- Grande número de células dramáticas, o que não existem em O Alienista
- Preocupação pelo enredo, onde a análise ocupa um lugar secundário
- Superficialidade de caracteres, visto que a preocupação do autor é contar a estória.
- Jogo da intriga embaralhada para manter acesa atenção do leitor.
O Conto como Espécie Literária
De um modo geral, a primeira ideia que nos ocorre quando pensamos em conto é de que se trata de uma narrativa curta, onde a estória se desenvolve linearmente, com princípio, meio e fim, abolindo-se os pormenores secundários. A ação tem que ser incisiva e direta, numa linguagem essencialmente narrativa.
Em síntese, podemos dizer que o conto, na sua estrutura tradicional (como é o caso de machado de Assis), constitui uma unidade dramática, ou seja, contém um só conflito, um só drama, uma só ação. O contista não nos dá a visão da vida na sua totalidade, mas procura nela um momento singular, representativo; um “flash” apenas. Por esta razão, jamais se prolonga, prendendo-se ao episódio em foco, não se perdendo o autor na análise detalhada dos fatos.
O Conto Machadiano
Machado de Assis é, sem dúvida, um dos maiores nomes do conto na Literatura Brasileira. Pode-se mesmo dizer que chegou a formar “escola”, visto que são muitos os contistas que seguem a sua linha.
Desde os primórdios de sua vida literária, Machado de Assis demonstrou inclinação para o conto, dada a tendência que sempre revelou para os ingredientes que caracterizam esse gênero: concisão do pensamento, sutileza de ideias e sobriedade de estilo, que o habilitavam a exercer perfeitamente a engenhosa arte do conto
A mensagem transmitida por Machado de Assis em seus livros tem sempre como veículo de expressão um estilo inconfundível, marcado pelo humor e pela ironia, numa linguagem sempre correta e bem cuidada além de sóbria.
Machado de Assis – Carreira Literária
Machado de Assis teve um vínculo com a atividade jornalística. Há fortes indícios de que Machado de Assis tenha sido editor literário de A Estação: Jornal Ilustrado para a Família, publicado no Rio de Janeiro por Henrique Lombaerts entre 1872 e 19042.
Machado colaborou 19 anos em A Estação – entre 1879 e 1898 –, sendo que na década de 1880, sua presença foi contínua, intensa e dominante. Além de O Alienista publicou aí D. Benedita, Casa Velha, Quincas Borba, mais de 30 contos, alguns poemas e textos de outra espécie. Por essas razões, é possível imaginar que A Estação tenha sido o jornal mais importante em sua atividade propriamente ficcional, tendo atuado de forma decisiva não só no desenvolvimento do repertório técnico e temático do escritor, mas também na constituição de sua imagem pública.
Nesse sentido, o segundo periódico em importância seria a Gazeta de Notícias, que deve se relacionar, sobretudo, com seu conceito de crônica.
A Estação era o mais conceituado jornal em seu gênero no Brasil.
Nessa ocasião, além de colaborador da Gazeta de Notícias, Machado de Assis era, basicamente, funcionário público do Império. Mesmo assim, não se pode negar a intensidade e a frequência de seu contato com o periódico de Henrique Lombaerts.
Parece claro que ele abraçou a literatura de periódicos não só com empenho artístico, mas também profissional.
Ao todo, Machado de Assis deve ter publicado 218 contos em periódicos, tendo recolhido apenas 75 em volume. A disparidade entre os textos deixados nas folhas e os editados em livros permite concluir que Machado de Assis associava intrinsecamente o conto ao jornal. Como se verá abaixo, o primeiro traço imanente oriundo dessa circunstância consiste na extensão das narrativas. Treinado no exercício da brevidade, o artista conquistaria eficiência na produção de efeitos rápidos e agudos. Todavia, a brevidade só seria atingida de fato com Papéis Avulsos, escritos em sua maioria para o espaço condensado da Gazeta de Notícias.
Com exceção de Miss Dollar e Aurora sem Dia, as demais narrativas de Contos Fluminenses (1870) e Histórias da Meia-noite (1873), seus primeiros livros de contos, foram publicadas no Jornal das Famílias.
A estrutura de O Alienista é dominada pelo princípio da interpolação, ou seja, uma narrativa longa não passa de um conjunto de pequenas estórias interligadas.
Em rigor, a convicção de que O Alienista se aproxima mais da novela do que do conto decorre, sobretudo, da constatação de que há, em seu corpo, contínua recorrência da técnica da interpolação, que torna a estória não só mais divertida, como também mais longa.
Parece-me que todos os casos intercalados na narrativa central de O Alienista possuem função adjetiva, isto é, ilustram o conceito de loucura de Bacamarte, tanto na primeira quanto na segunda fase de sua experiência doutrinária. Como se viu anteriormente, essas micronarrativas funcionam também como caracteres ou retratos morais, o que lhes confere ainda a condição de índices do estado geral das pessoas na cidade ou da ubiquidade da demência, que “entra em todas as casas”. Tal pormenor pode ser considerado como mais um fator de variedade que converge para a unidade, sinal claro de excelência técnica do autor.
Como se tratava de revista mensal, o autor dispunha de espaço – circunstância que atua na estrutura dos textos, tornando-os mais longos e menos densos.
No primeiro livro, há sete contos; no segundo, apenas seis.
Papéis Avulsos, seu terceiro livro de contos, possui doze narrativas; Histórias sem Data (1884), dezoito; Várias Histórias (1896), dezesseis.
A publicação seriada de O Alienista ajusta-se aos desdobramentos dessa hipótese. Embora a estória seja relativamente longa, os capítulos foram concebidos como sequências capazes de produzir a impressão de unidade, sobretudo quanto à inferência humorística. Somente o capítulo quinto da novela, O Terror, sendo maior do que a média, foi publicado em duas edições do periódico. Mesmo assim, ambas as partes possuem unidade de sentido e de enredo.
O encerramento do Jornal das Famílias, em 1878, coincide mais ou menos com a morte de José de Alencar e com o surgimento do suplemento literário de A Estação e da Gazeta de Notícias. Consolidavam-se os matizes de uma nova poética cultural no Rio de Janeiro e de uma nova poética da narrativa em Machado de Assis.
Sobre o Autor
Machado de Assis, foi um escritor brasileiro, amplamente considerado como o maior nome da literatura nacional. Escreveu em praticamente todos os gêneros literários, sendo poeta, cronista, dramaturgo, contista, folhetinista, jornalista, e crítico literário e também foi um grande comentados e relator dos eventos político-sociais de sua época. Nascido no Morro do Livramento, Rio de Janeiro, de uma família pobre, estudou em escolas públicas e nunca frequentou universidade. Os biógrafos notam que, interessado pela boemia e pela corte, lutou para subir socialmente abastecendo-se de superioridade intelectual. Para isso, assumiu diversos cargos públicos, passando pelo Ministério da Agricultura, do Comércio e das Obras Públicas, e conseguindo precoce notoriedade em jornais onde publicava suas primeiras poesias e crônicas. Suas obras mais notadas foram e ainda são Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borbas (1891), Dom Casmurro (1899), O Alienista (1882) e Helena (1876).
Simão Bacamarte, o alienista, nasceu com a paixão da ciência. Filho da Vila de Itaguaí, estudara em Coimbra e Pádua, regressando para cá com fama de maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas.
A ciência era o seu universo. Na medicina, se impressionava principalmente o recanto psíquico, a patologia cerebral dominada por um sentimento humanitário, achou ele de construir uma casa para alienados, a qual tomou o nome de Casa Verde.
O emprenho máximo de Simão era aprofundar o estudo da loucura até o ponto em que pudesse penetrar a causa do fenômeno e descobrir o remédio universal.
Não lhe faltava campo para investigações. A Casa Verde ia alojando os loucos de Itaguaí, bem como os dos lugares vizinhos, e dentro em pouco, furiosos, mansos, monomaníacos, formavam já uma pequena povoação. A variedade impressionou vivamente o Dr. Simão Bacamarte. Com o tempo, uma profunda teoria entrou a trabalhar-lhe o cérebro. Era uma dessas grandes teorias capazes de alargar os horizontes e as bases do universo.
Crispim Soares, o boticário, foi o primeiro a gozar as honras da iniciação na teoria do alienista, que o recebeu para a entrevista com a alegria própria de um sábio, uma alegria abotoada de circunspecção até o pescoço.
Na opinião de Bacamarte, a demência abrangia uma vasta superfície de cérebros.
Supondo o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia.
Uma vez que a razão devia ser o perfeito equilíbrio de todas as faculdades, a casa Verde estava destinada a ser a morada do mundo. E assim efetivamente começou a ser. A loucura, objeto de meus estudos, explicava o alienista, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.
Este era recolhido porque, herdando uma fortuna que lhe daria para viver até o final dos tempos, entrou a dividi-la com os amigos, sem usura. Aquele, porque, subindo de simples albardeiro a grande proprietário, passava horas e horas a admirar a sua casa, a mais bela e suntuosa de Itaguaí. No primeiro viu o alienista a configuração moral do mentecapto; no segundo, o amor das pedras, moléstia de cunho histórico.
E assim, numa semana, vinte pessoas das principais da vila, foram recolhidas à Casa Verde. Novos pavimentos já não comportavam a população dos alienados do Dr. Bacamarte.
A coletânea tornou-se dentro em pouco desenfreada. Um, que tinha o hábito de cumprimentar a toda a gente, descobriu o alienista a “vocação das cortesias”. Outro era recolhido porque dera curso a uma mentira. Outro porque a divulgara. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, ninguém escapava à vigilância do alienista.
Até Dona Evarista, mulher do alienista, foi recolhida à Casa Verde. Tal situação acabou por acirrar os ânimos e provocou, na vila, uma rebelião. Era preciso derrubar o tirano e destruir a Casa Verde. Liderados pelo barbeiro Porfírio, a câmara foi deposta e o governo da cidade foi entregue ao ilustre Porfírio. Este seria deposto também por outro barbeiro, numa manobra rápida e fulminante.
Um dia, contudo, Itaguaí acordou sobressaltada. Todos os loucos da Casa Verde iam ser postos na rua. Simão bacamarte oficiara à câmara municipal, comunicando haver verificado das estatísticas da vila e da Casa Verde que quatro quintos da população estavam aposentados naquele estabelecimento.
Nestas condições, fora obrigado a reconsiderar a sua teoria que excluía da razão todos os casos em que o equilíbrio das faculdades não se manifestasse perfeito.
Desse exame e do fato estatístico resultara para ele a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta e, portanto, que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto
Depois disso, todos passaram a acreditar na lealdade do alienista e a vida política da vila se normalizou.
Desta vez, a influência à Casa Verde foi muitíssimo menor. Ainda assim apareceram alguns exemplares. Um dos vereadores da câmara, o vigário da vila e alguns outros. Um advogado esteve a pique de ter o mesmo destino. Nele Simão Bacamarte descobriu tal conjunto de qualidades morais e mentais, que era perigoso deixá-lo na rua. Preparou-lhe uma prova de honestidade e as qualidades do advogado foram totalmente anuladas. O distinto jurisconsulto deveu a esta experiência a liberdade.
Os novos reclusos foram, convenientemente, alojados por classes. Aqui era a galeria dos modestos. Ali, a dos tolerantes. Além, a dos íntegros. Vinham depois os verídicos, os leais, os magnânimos, os sinceros, todos agrupados conforme a qualidade predominante.
Já estava em tempo de atacar a ciência pelo lado da terapêutica. Simão Bacamarte, neste ponto, revelou qualidades excepcionais. As curas foram pasmosas pela rapidez, combatia o mal colocando à prova a qualidade moral predominante. Ninguém conseguiu escapar à eficiência dessa terapêutica…
Houve um doente poeta que resistiu a tudo. Simão Bacamarte começava a despertar da cura, quando teve a ideia de mandar correr a matraca para o fim de o apregoar como um rival de Garção e de Píndaro. Foi um santo remédio.
O vereador tão cruelmente afligido de moderação e equidade teve a felicidade de perder um tio; digo felicidade, porque o tio deixou um testamento ambíguo, e ele obteve uma boa interceptação corrompendo os juízes, e embaçando os outros herdeiros. A sinceridade do alienista manifestou-se nesse lance; confessou ingenuamente que não teve parte na cura.
Também o vigário, submetido a uma prova, viu por água abaixo as suas piedosas e sacramentadas virtudes morais e espirituais. Assim também a mulher do boticário e todos os outros. A Casa Verde estava de novo vazia.
Mas estas curas tão fáceis incutiram uma terrível suspeita no espírito do alienista. Estariam eles de fato doidos? Teria sido dele a cura? Ou o que pareceu cura não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?
Sim eu não posso ter a pretensão de haver-lhes incutido um sentimento ou uma faculdade nova; uma e outra existiam no estado latente, mas existiam.
Começava a dúvida. Entretanto não se conformava o alienista que em Itaguaí não houvesse nenhum cérebro concertado. Daí a considerar-se a si mesmo o detentor do perfeito equilíbrio foi um passo.
Sim, há de ser isso, pensou ele. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, e a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto.
Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era ilusão; mas sendo homem prudente, resolveu convocar um conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi afirmativa.
Nenhum defeito?
Nenhum, disse em coro a assembleia.
Nenhum vício?
Nada
Tudo perfeito?
Tudo.
Estava ali um espécime raro, um espírito perfeitamente equilibrado, um homem dotado de todas as qualidades morais e mentais, um autêntico, um verdadeiro mentecapto, um alienado que gravitava em volta da carcomida e corrompida humanidade.
Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ao contínuo, recolheu-se à Casa Verde.
Não era possível levar mais longe do que Machado de Assis levou o arrasamento da razão e das teorias que a proclamavam o último reduto de todas as verdades.
Por Jackelline Costa
Esta resenha foi originalmente postada no site Cultura&Ação
http://culturaeacao.com/?resenhas=resenha-o-alienista-de-machado-de-assis
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